O Estado tem duas formas de intervir no espaço construído : provendo a infraestrutura e regulando o uso e ocupação do espaço resultante. “Instrumento urbanístico” diz respeito ao segundo caso , e é o termo utilizado para referir-se ao conjunto de ações legalmente possibilitadas ao Poder Público para intervir nos processos urbanos e especialmente na produção do espaço, regulamentando, controlando ou direcionando-a. É um mecanismo dado ao Estado para capacitá-lo a conduzir a relação dialética entre Estado e mercado , base da produção do espaço da cidade .
Os instrumentos urbanísticos podem ser considerados mais ou menos “interventores ” no sentido que podem correponder a maior ou menor poder ao Estado para disciplinar os processos de produção e reprodução individuais que se desenvolvem na cidade . Entretanto , o grau com que eles acabam ou não conseguindo esse objetivo depende de questões mais amplas e complexas do que a simples eficácia técnica do instrumento ,como ilustrado a seguir por um exemplo recente.
O Estatuto da Cidade , aprovado em 2001, regulamentou uma série de instrumentos urbanísticos, como o direito de preempção, a concessão real de uso para fins de moradia , as Zonas Especiais de Interesse Social , entre outros , que pretendem ser um avanço no sentido de dar ao Estado maior capacidade para efetivar a chamada “reforma urbana ”, conjunto de transformações que , respondendo à demanda dos movimentos populares e dos urbanistas progressistas , permitiria a implementação de uma cidade socialmente mais justa . Sua implementação , entretanto , vem enfrentando dificuldades , que eram previsíveis: a questão não é exatamente ter tais instrumentos à disposição , embora isso seja essencial , mas sim saber até que ponto faz parte da lógica da sociedade, nesse caso, da sociedade de elite efetivá-los.
No campo urbanístico, tratava-se de assegurar reformas que garantissem, em essência , três elementos :
1) a higienização da cidade , abrindo ruas e permitindo insolação e ventilação para diminuir a alta incidência de epidemias e aumentar a expectativa de vida (que era de 30 anos em 1850, na Europa) e a reprodução da força de trabalho ;
2) o controle social , por meio de avenidas amplas o suficiente para manobrar tropas que pudessem aplacar as constantes revoltas populares (dezenas delas eclodiram em Paris entre 1848 e 1850);
3) a promoção de intervenções que produzissem valorização imobiliária em benefício aos altos círculos sociais próximos do poder .
As reformas de Haussmann consolidaram de vez o uso dos instrumentos urbanísticos na França, assim como a provisão maciça de infra-estrutura (a outra vertente da intervenção estatal ): construiu-se a base viária , a rede de esgotos , os bulevares , e regulamentaram-se as normas edilícias, o código de obras , o uso do solo , ao mesmo tempo em que os edifícios “haussmannianos”, de frente para os novos bulevares , tornaram-se uma fonte de enriquecimento fabulosa para uma pequena casta de engenheiros e arquitetos próximos do prefeito e do imperador (Louis-Napoléon Bonaparte, ou Napoleão III). Aquele que a historiografia clássica considera, às vezes pouco criticamente, o “pai ” do urbanismo moderno , foi também o responsável pela consolidação do ferramental dado ao Estado para controlar e regulamentar a produção do espaço urbano .
Croquis da equipe de Haussmann para intervenções viárias em Paris, 1850. Fonte:Pinon, Pierre. “Atlas du Paris Haussmannien: la ville en heritage du Second Empire à nos jours", Paris : Parigramme, 2002.
No Brasil, a efetividade dos instrumentos urbanísticos em trabalharem no sentido de seu objetivo declarado se depara com o antagonismo estrutural da sociedade de elite : em um país em que a promoção de uma economia em pleno desenvolvimento com base no mercado interno - e correspondente elevação do nível de reprodução da força de trabalho - é entravada pela constante expatriação de excedente, e onde a inserção no capitalismo mundial se deu essencialmente pela capacidade em oferecer mão-de-obra barata , instrumentos que foram consolidados para dar ao Estado capacidade em promover cidades mais homogêneas e socialmente equilibradas na distribuição da infra-estrutura e no acesso à terra urbanizada (como foi o caso da construção do Bem-Estar Social ) parecem estruturalmente fadados ao fracasso , já que se opõem à lógica de um aparelho de estado feito para “desestruturar ” e não o contrário . Nesse sentido , os alcances e limites desses instrumentos sempre serão condicionados por este antagonismo estrutural. Muitos urbanistas de tendências socialistas, porém, vêm em sua aplicação e consolidação uma etapa necessária na tentativa de se construir uma sociedade e cidades um pouco menos desiguais .
Referências:
DEÁK, Csaba (1985) Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy PhD Thesis, Cambridge, especialmente "Gênese do planejamento urbano"
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz, e Cardoso, Adauto Lucio (1894) “Planejamento urbano no Brasil: paradigmas e experiências ” in Espaço & Debates, nº 37, Ano XIV, São Paulo.
Plataforma digital FAU USP. Disponível em <http://www.fau.usp.br/docentes/depprojeto/c_deak/CD/4verb/instrumentos-urb/index.html>. Acesso em: 20 de junho de 2016.
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