À primeira vista um espaço urbano pode ser identificado
tanto pela ausência de elementos construídos quanto pela ausência de uso. Em certa
medida, a ausência de elementos físicos contribui para a ausência de usos e,
por outro lado, a ausência de usos é capaz de tornar um conjunto de elementos
físicos sem sentido. Contudo, para uma captura mais precisa desse objeto (o
espaço vazio), no lugar de abordar a escala do município, sugiro um enfoque
mais palpável do assunto: a escala microlocal.
Essa escala tem por referência aquela porção urbana que uma
pessoa ou grupo percebe, no dia-a-dia, como o espaço onde mora na cidade, sobre
a qual pode exercer influência direta. Nessa escala, se subtrairmos os lotes e
os espaços públicos destinados ao lazer, sobra o espaço público cotidiano
composto por calçadas, pontas de quarteirão, ruas, canteiros centrais,
rotatórias, ilhas para a travessia de pedestre, áreas lindeiras à ferrovias,
resíduos de lotes e qualquer outro espaço livre. O enfoque na escala microlocal
complexifica a definição de espaço vazio colocada no início: não se trata
apenas da ausência de usos ou da ausência de elementos construídos, mas sim do
modo como se estrutura a gestão dos espaços públicos. A organização das funções
urbanas na escala do município gera espaços que, na escala microlocal, acabam
reduzidos a circulação entre o ponto e outro ou a fragmentos marginais às
rotinas de uso. Os canteiros centrais, por exemplo, que funcionam como parte do
sistema viário e de drenagem, dificilmente abrigam usos ancorados na escala
microlocal.
O enfoque na escala microlocal exige ainda uma ruptura com o
raciocínio “figura / fundo” na discussão dos espaços vazios de uma cidade. No lugar
de uma abordagem que considera a apropriação pelos habitantes urbanos dos
espaços livres definidos previamente por especialistas, é necessário partir
para o debate da atuação criativa e deliberativa de indivíduos e grupos na
produção do espaço público cotidiano. É isso que está em jogo na noção de
produção do espaço e direito da cidade, discutidas pelo filósofo Henri Lefebvre
e mais recentemente pelo geógrafo David Harvey.
O direito à cidade consiste no direito de decidir e de atuar
diretamente na produção do espaço a partir do seu valor de uso, em
contraposição ao motor da produção capitalista do espaço: o valor de troca. Ou
seja, é questionável que a via de atuação no espaço urbano reconhecida comi
legítima aconteça apenas por parte do poder público e por agentes privados que
recebem a sua concessão.
Se os espaços vazios da escala microlocal são passíveis de
influência direta pelos moradores que vivem no entorno, é descabido que no
âmbito da administração municipal não haja nenhum mecanismo de regulação que
considere tal possibilidade. Em outras palavras, a aplicação dos mesmos
processos de planejamento e de gestão independente da escala contribui para que
esses espaços permaneçam vazios. Junto a esse fato e diretamente fomentado por
ele, os indivíduos tendem a se manter apáticos em relação à produção do espaço
que está fora da esfera doméstica. Há inúmeros bairros e vizinhanças onde as
pessoas negligenciam por completo a possibilidade de intervir, considerando que
seria tarefa da prefeitura cuidar de tudo o que não é propriedade privada.
Existem hoje na região metropolitana de Belo Horizonte
muitas áreas ociosas que necessitam de pequenos incrementos para que passem a
ser frequentadas no dia-a-dia e que podem abrigar usos e elementos construídos
adaptáveis ao longo do tempo de acordo com negociações no âmbito microlocal. A
discussão acerca dos espaços vazios a partir desta escala levanta o debate
sobre a produção coletiva dos espaços públicos, que parte da negociação, da
tomada de decisões e do trabalho colaborativo entre os indivíduos diretamente
interessados. E uma vez que essa produção é independente do expediente da
administração municipal e da iniciativa privada, ela pode se contrapor
criativamente aos imperativos dessas duas instâncias na produção do espaço
urbano.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
HARVEY,
David. The right to the city. New Left Review, nº 53, setembro-outubro,
2008.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes Ltda,
1991.
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